Estamos vendo esse culto das empresas
socialmente responsáveis, que pararam de doar para as entidades,
criaram projetos próprios, dos quais elas não entendem,
que normalmente surgem do departamento de marketing. Tem um estudo do
Iser (Instituto de Estudos da Religião) mostrando de onde surgiram
os premiados do Eco, que é da Câmara Brasil-Estados Unidos,
que já tem quase 20 anos. É uma pesquisa séria
e bem fundamentada, e ela descobriu com choque, há seis anos,
que a maioria começou no departamento de marketing.
O marketing descobriu o que é
um projeto legal, que o consumidor vai gostar. As empresas hoje estão
tirando pessoas habilitadas das entidades, pessoas já treinadas.
Para treinar um líder social, as ONGs gastam de 10 a 12 anos
de investimento. Estão tirando a peso de ouro, e esse é
o maior crime que eu vejo cometido por essas empresas socialmente responsáveis,
desorganizando o que nós já tínhamos há
400 anos.
Então, por exemplo, os R$ 200
mil que iam para um asilo de lepra que eu conheço, agora são
gastos na própria empresa: R$ 20 mil vão para o diretor
de responsabilidade social, que agora está ganhando um salário
legal, uns R$ 25 mil vão para a agência de propaganda que
vai fazer a divulgação do projeto, o assessor de imprensa
recebe R$ 10 mil. Vai ter um anúncio em alguma revista, que vai
custar no mínimo R$ 60 mil, tudo para ensinar balé a favelados,
e o resto do dinheiro do projeto vai para o professor de balé.
E a lepra no Brasil está crescendo. O Brasil, por incrível
que pareça, tem mais lepra do que a Índia. Esse é
o resultado da valorização das empresas socialmente responsáveis.
Que critério o departamento
de marketing das empresas usa para escolher qual área deve ser
beneficiada com um projeto social?
Kanitz - Nos últimos
seis anos, nenhum diretor de marketing nos procurou para saber do que
as entidades mais precisam. É muito fácil você ser
bonzinho com o dinheiro dos outros. Em um país pobre como o Brasil,
que tem tanta carência social, eu tenho uma lista de 500 itens
de que as entidades precisam. E, se a gente não seguir essas
prioridades, nós não vamos resolver esses problemas.
Tem um curso de inglês que está
ensinando inglês para a periferia. É ótimo, mas
não é prioridade. Eu conversei com o dono dessa escola
de inglês, e ele me disse: "Mas é isso o que a gente
sabe fazer". Se toda empresa só fizer o que sabe fazer,
nós não vamos resolver os problemas sociais. O que a Alcoa
vai fazer: vai dar alumínio para as entidades? Não. Quem
vai combater a prostituição infantil? Qual é a
empresa brasileira especializada em prostituição infantil?
Não tem. Por isso é que eu digo: cada macaco no seu galho.
As empresas deveriam estar fazendo seus produtos mais baratos, sem destruir
a ecologia, tendo lucro, e os acionistas, com esses lucros, devem ser
incentivados a fazer doações.
Quais são as áreas
que dão maior ibope quando uma empresa decide ser socialmente
responsável?
Kanitz - Os diretores
de marketing não são bobos e sabem que na televisão
um projeto que fale de criança, uma loira, especialmente, de
olhos azuis, fica muito bonito. Lepra já é mais complicado,
abuso sexual é horroroso, prostituição infantil
pior ainda. Mas educação é bom e é crítico,
porque é função do Estado. Eu estou pagando imposto
para fazer educação e saúde, que são funções
do Estado. E o Estado não quer, por exemplo, cuidar de abuso
sexual, porque menina de 13 anos abusada pelo próprio pai não
vota. Mas o pai vota. Então é politicamente incorreto
para um político e para uma empresa mais ainda.
Eu não consigo imaginar uma empresa
que vai querer ter a sua marca, construída com suor, associada
a abuso sexual. Por isso é que eu acho, e a literatura diz isso,
que a responsabilidade social é ou do Estado ou do indivíduo,
do ser humano. Nós precisamos nos tornar mais cidadãos.
Cada um precisa começar a doar parte da nossa renda para as entidades
que achar importantes. A última coisa que uma nação
quer é ter empresas determinando a agenda social do país.
Quem tem que ser responsável
socialmente é o indivíduo e não a empresa?
Kanitz - Sem dúvida.
O executivo de uma empresa é um preposto da diretoria e dos acionistas.
Quem tem que ser socialmente responsável, em última instância,
é o acionista, são os funcionários, a pessoa física.
Os americanos sempre analisam essas coisas mais corretamente. Não
existe nos Estados Unidos a Fundação Microsoft. O que
existe é a Fundação Bill Gates. O Bill Gates faz
seus projetos sociais, não divulga isso, ele não precisa
dizer que é mais socialmente responsável do que o Ted
Turner, não existe essa competição. E ele acaba
determinando seus projetos sem interesse de vender mais software pela
Microsoft.
Acho que isso é a forma mais correta.
As pessoas podem até perceber que é o Bill Gates da Microsoft
que está fazendo vacina, mas se a Microsoft fizesse uma fundação
provavelmente estaria doando software para o mundo inteiro, para combater
a Linux, ou doando computadores, porque ele sabe que alguém vai
ter que comprar software para fazer esse computador funcionar.
As empresas terão um efeito bumerangue
porque todas as religiões dizem que a filantropia nunca deve
ser alardeada. Você nunca deve dizer para os outros como você
é bonzinho, como você é socialmente responsável.
As pessoas que recebem as doações vão acabar odiando
você porque você alardeou o que fez. E tem muitas empresas
que fizeram como política de marketing aparecer como socialmente
responsáveis. Nos próximos dez anos, elas vão desaparecer.
As empresas que fazem alarde
da sua postura socialmente responsável estão preocupadas
apenas com sua imagem?
Kanitz - Estão
preocupadas e estão danificando sua imagem. O consumidor não
é bobo. Ele sabe que aquele projeto social que está sendo
alardeado está embutido no preço. E todo projeto de criança-educação
representa menos dinheiro para abuso sexual, lepra. E o consumidor talvez
tenha uma outra prioridade. Eu prefiro empresas que dizem: ¿Já
que eu quero ser socialmente responsável, vou abater o preço
do produto em R$ 2, que é o custo que eu tinha embutido, mas,
por favor, use esse dinheiro para fazer uma doação para
uma entidade de sua própria escolha".
Como você vê o cenário
da responsabilidade social de empresas para os próximos cinco
anos? O que pode ser mantido e o que pode ser melhorado?
Kanitz - O consumidor
está começando a perceber a jogada de marketing que está
por trás. Tem muita empresa socialmente responsável que
não alardeia, aí eu fico contente. Com o tempo, esse modismo
vai acabar, graças a Deus. As grandes fundações
são feitas para que nos anos de vacas gordas você acumule
dinheiro, como a Fundação Bill Gates, a Fundação
Ford, e nos anos de vacas magras essas fundações começam
a doar muito mais.
As empresas fazem exatamente o contrário:
nos anos de vacas magras, quando os lucros começam a cair, elas
reduzem a filantropia, exatamente o que não se deve fazer. Por
isso, desde que surgiu esse movimento de responsabilidade social das empresas,
os problemas sociais aumentaram. Tenho uma campanha que é "Adote
um líder social". É chegar na madre superiora de uma
dessas instituições e perguntar: "Como eu posso ajudar
você?" e não perguntar: "Como você pode ajudar
o marketing social da minha empresa?".
BBC
Brasil